O respeito às tradições: Comrades vs. São Silvestre

A corrida mais tradicional que temos aqui no Brasil é a São Silvestre, que existe desde 1925. Mas, infelizmente, sua tradição encontra respaldo apenas nos corredores menos entusiastas que, em geral, assumem como meta completar a prova logo que dão os seus primeiros passos. A culpa disso, claro, não é dos corredores: a própria história credencia a São Silvestre a ser uma das principais provas do calendário mundial. Mas anos de (des)organização da Yescom transformaram a prova em um amontoado de gente se acotovelando em meio a uma absoluta falta de espaço que poderia ser resolvida com medidas muito simples (como largada em ondas, por exemplo).

Com o tempo, a São Silvestre foi saindo da alma do corredor, deixando de ser aquela prova desejada por todos, e entrando como (mais uma) competição esportiva. Com méritos por ser quase nonagenária, claro – mas, ainda assim apenas uma competição.

Começo esse post com a São Silvestre porque, apesar da diferença nas distâncias (15km vs 89km), ela é (do ponto de vista da tradição) a que mais se assemelha à Comrades aqui no Brasil. Mas, enquanto corredores brasileiros vão desencanando da São Silvestre por conta das condições precárias (e desrespeitosas) em que ela é realizada, lá a coisa é diferente. E isso ficou muito claro para mim nos últimos dias, depois de uma descoberta de trapaça na Comrades.

Não, não estou falando de vencedores pegos em anti-doping ou coisa do gênero. Estou falando de aproximadamente 30 corredores anônimos, como eu ou você, que decidiram trapacear na corrida e foram pegos em um estudo feito por um universitário. A conta que ele fez foi simples: pegou os dados dos chips de todos os corredores (disponíveis no site do evento) e os plotou em um gráfico para analisar splits negativos.

Veja o gráfico abaixo, de 2013, como exemplo:

Screen Shot 2014-02-18 at 11.57.10 AM

 

Todos os pontos azuis representam corredores posicionados de acordo com o tempo total de corrida (eixo horizontal) e o split (horas a mais ou a menos de diferença entre a primeira e a segunda metade da prova).

Normalmente, conseguir um split negativo em uma maratona, mesmo que de alguns minutos, já é algo difícil. Em uma ultra, por sua vez, isso é algo digno de profissionais ou amadores MUITO bem treinados. Mas perceba que, no gráfico, três corredores que completaram a prova entre 10 e 11 horas tiveram splits negativos de mais de 1 hora.

O pesquisador responsável pelo levantamento, Mark Dowdeswell, fez outros comparativos. Em alguns casos, os corredores teriam feito a segunda metade da prova em ritmo de recorde mundial de meia maratona para conseguir chegar nos tempos que chegaram. Ou seja: a probabilidade deles terem conseguido, efetivamente, chegar nesses tempos, é estatisticamente nula.

A conclusão: de 2009 a 2013, cerca de 30 corredores abandonaram a corrida na metade, entraram em um carro, percorreram alguns quilômetros e depois voltaram para terminar.

O motivo que leva alguém a trapacear em um evento em que ele não ganhará prêmio e cujo mérito é unicamente ter conseguido terminar é algo que eu honestamente não consigo compreender. Mas isso não importa.

O fato é que, quando esse estudo saiu (divulgado pelo RunTalkSA), toda a comunidade de corrida da Africa do Sul entrou em estado de choque, tamanho o amor que eles tem pela Comrades. Todos os jornais esportivos destacaram o fato e as entidades de esporte de Kwazulu-Natal (estado onde a corrida ocorre) e da própria Comrades convocaram julgamentos imediatamente. Os dados estão sendo analisados e há grandes possibilidades dos 30 corredores perderem as suas medalhas e serem banidos do evento.

Para quem acompanha a história de Comrades faz tempo, esse tipo de tratamento dado impressiona. Apenas para reforçar a comparação: na São Silvestre, não conseguimos sequer que a largada seja minimamente organizada ou que o percurso ou horário sejam respeitados; lá, mesmo notícias de corredores anônimos que trapacearam (no fundo do field) geram julgamentos, notícias e uma série de providências dignas de quem considera a prova como algo sagrado.

Deu inveja deles. E orgulho de participar de uma prova como essa em junho.

5 comentários em “O respeito às tradições: Comrades vs. São Silvestre

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  1. Sensacional esta postagem Ricardo. Você citou os três corredores que se destacam no gráfico, mas o que me chamou a atenção foi um quarto corredor que extrapolou o cumulo da exatidão. Veja no gráfico um ponto azul, justamente sobre duas linhas tracejadas, indicando que ele correu a prova em 11 horas e que o split negativo foi 1 hora. É isso mesmo?

    Dionisio Silvestre
    http://correrpurapaixao.blogspot.com.br/

  2. vendo o gráfico vemos que o grosso de densidade é sub11h e sub12h… e sub12h o bicho literalmente PEGA. Muita emoção. Como tenho marata para 4h, se fizer seria 4h + 4h + 2h = 10H. Então chegando até 11hs para mim é factível…basta criar coragem e treinar…

    1. Alex, se tem uma coisa que todos falam de ultras – principalmente a Comrades – é que o componente mental é bem mais importante que o físico. O físico precisa apenas de treino e consistência – e isso todos conseguimos. É o q vc falou mesmo: criar coragem e treinar. E se inscrever, claro!

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