Os olhares no saguão de embarque do aeroporto de Guarulhos eram de reconhecimento. No portão 22, de frente para o avião ainda vazio da South African, alguns trajavam roupas com o logo de Comrades, outros – como eu – pareciam “disfarçados de civis”.
Mas, ainda que em silêncio, todos se entreolhavam como que buscando alguma desculpa para uma conversa cúmplice que dificilmente aconteceria. Todos queriam falar sobre o desafio que colocaram em seus caminhos por livre e espontânea vontade – algo que possivelmente soaria tão autoelogioso que, por puro constrangimento, nunca fez a passagem do pensamento à palavra.
E foi entre olhares silenciosos que o embarque aconteceu para o vôo de pouco mais de 7 horas entre São Paulo e Johannesburg.
Nas poltronas à minha frente, dois amigos comparavam estratégias e mapas altimétricos de Comrades.
Ao lado, tênis parcialmente cobertos por uma calça com o emblema da prova balançavam sem parar, como se os pés dentre deles quisessem estar no caminho entre Pietermaritzburg e Durban – e não trancados em um avião.
Mas, em algumas horas, todos caíram no sono vítimas do tempo que, em seu pace imutável, sempre acaba superando qualquer ansiedade.
Assim, acordados apenas por breves períodos de turbulência, aterrissamos na África, terra sagrada para mim por algum motivo que honestamente nem eu mesmo sei ao certo.
Escrevo este post de um restaurante no aeroporto de Johannesburg enquanto aguardo a minha conexão para Durban. Entre um gole e outro de café, brasileiros e estrangeiros destinados a Comrades passam caminhando rápido, tornando-se, ainda que por poucos segundos, paisagem.
Pode-se, nitidamente, dividir os corredores de acordo com seus olhares. Os novatos – como eu – são mais acelerados, dominados pela ansiedade do desconhecido e ornamentados com a expressão duvidosa de soldados antes da primeira batalha. Os veteranos, por sua vez, tem semblantes mais seguros, fixos, como que honrando os 90 ou mais quilômetros que já percorreram em ocasiões anteriores.
Mas todos parecem pertencer a uma espécie de clã próprio, de etnia invisível, de grupo anônimo unido não por pátrias, mas pelo casamento de decisão com determinação.
É fácil esquecer que, no final das contas, estamos falando apenas de uma corrida. Estamos mesmo?
Quem corre uma ultra o faz para espantar os seus fantasmas, para fazer as pazes consigo mesmo por algum motivo qualquer, para celebrar a vida que algum dia foi posta em risco, para se entender, para sintonizar corpo e alma na mesma frequência. Isso é mais do que largar em um ponto e chegar em outro: é honrar, a cada um dos 90 quilômetros, anos de jornadas interiores disciplinadas e consistentes, inquestionavelmente doloridas em alguns momentos e extasiantes em outros.
Chamar uma ultra de corrida é menosprezar a dificuldade que é conseguir extrair puro prazer e senso de paz interior ao passar 10, 11, 12 horas cruzando montanhas e enfrentando temperaturas que variam de 5 a 25 graus.
Uma ultra, descobri há pouco tempo, é um outro esporte, bem diferente do que se convenciona chamar de corrida.
E correr a mais famosa das ultras no sagrado solo africano, saindo das savanas e chegando no Índico, tem um grau ímpar de encantamento próprio.
É quase uma religião, tamanho o grau de espiritualidade envolvido.
Tudo isso passa pelos olhares dos que estão, neste instante, cruzando o aeroporto de lado a lado, portando o emblema de Hermes nas roupas ou nos rostos.
Tudo isso é Comrades.
Que, para mim, começou agora.
Ricardo,
Bom demais ler esta postagem sobre a Comrades, seu texto nos transporta no tempo, incrível, mas fui capaz de voltar no tempo. Embarco daqui a pouco e me recordarei, palavra por palavra de sua poesia. Ultra abraço e que o amigo seja muito feliz nesta jornada (Comrades).
Dionísio Silvestre
http://correrpurapaixao.blogspot.com.br/
Valeu meu amigo! Pelo comentário e por ter acompanhado o blog desde o dia 1, o q muito me honra. Até já!
Ricardo,
Já li muitos textos bons em seu blog, mas este em específico me emocionou. Estou me preparando para estar no seu lugar em 2015 ou 2016 e consegui perceber a proporção quanto alguns sentimentos que sinto hoje irão tomar.
Desejo uma grande corrida a você e que consiga colocar tudo que treinou em prática.
Grande abraço.
Muitíssimo obrigado pelas palavras Rod. Quem sabe eu não venha contigo em 2015 tb? Afinal, pelo que tenho conversado, parece que basta fazer a primeira Comrades para se viciar!
O texto fez muito sucesso e acho que convenceu mais duas corredoras para 2015. Emocionante, traduziu um sentimento predominante. Diria que além dos motivos apresentados, seguimos nessa vida porque gostamos de buscar o extraordinário.
Q bom saber q ajudei a convencer duas corredores! Só isso já valeu todo o blog!
Bem vindo! Chegou bem? Shosholoza! Nato
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Cheguei ótimo! Já dei uma corridinha light de fim de tarde aqui sob um pôr do sol incrível e agora estou de pés para o alto 🙂