Faltavam 30 km para terminar. Ainda era muito chão, mas o cansaço parecia estar sendo naturalmente combatido pela alegria de correr a Comrades pela segunda vez, cortando uma multidão que incentivava cada passo dado.
Recebi um tapinha nas costas: era o David, amigo que fiz na minha primeira Comrades e que correria o restante do percurso comigo. Amigos, aliás, foi o maior presente que essa prova me deu, fazendo jus ao seu nome.
Quando comecei a treinar para a Comrades de 2014 estava essencialmente só: conhecia poucas pessoas no mundo das ultras, não tinha experiência e nem muita gente com quem falar. Normalmente, qualquer pessoa com quem você comente que pretende fazer algo maior que uma maratona te lança um olhar de tamanho receio quanto à sua sanidade mental que, aos poucos, acaba-se preferindo guardar as suas metas para si mesmo.
E esse cenário mudou apenas na véspera da minha primeira Comrades, em Pietermaritzburg, quando, por coincidência, me vi no mesmo hotel de um grupo grande de brasileiros: Zilma, Leandro, Tadeu, Dirceu, David e outros. Ainda não sabia àquela altura, mas todos acabariam se transformando em amigos daquele momento em diante.
Cruzada a linha de chegada de 2014 no estádio de Kingsmead, em Durban, eu era uma outra pessoa: um dos meus maiores sonhos no mundo das corridas havia se realizado. Às lágrimas, encontrei com os brasileiros na tenda internacional e comemoramos juntos, repassando cada um daqueles instantes esquisitos que fundiram dor e euforia em uma única coisa amorfa, forte, inesquecível.
Nos 12 meses seguintes, motivado pela sensação de vitória pessoal e com sede de desafios diferentes, me embrenhei pelas trilhas. Fiz uma série de ultras diferentes, cortei vinhedos, montanhas, charcos e colecionei vistas que nunca esquecerei. Diferentemente dos meses anteriores, no entanto, não estava mais só: todos os que conheci naquela noite em Pietermaritzburg acabaram participando dessa minha “segunda vida” fora do cotidiano tradicional, seja com dicas preciosas, com ouvidos abertos e com troca de histórias colecionadas pelos chãos do mundo.
Quando aterrissei de volta em Durban no dia 28 de maio de 2015, tudo parecia diferente. A cidade, que soava exótica há apenas um ano, era familiar; os cumprimentos zulus estavam mais claros, o mar de indianos me fazia sentir quase em casa, o som do Índico lambendo as areias instalava um sorriso imediato na face. Sabia, desde o primeiro minuto em solo sul-africano, que essa seria a minha última Comrades – e queria aproveitar esse naco do continente selvagem como nunca.
Aproveitei.
Nos 6 dias que passei aqui, mergulhei de cilindro entre tubarões e moreias, fui a um jogo de rugbi, fiz trekking pelas montanhas Drakensberg com direito a conferir impressionantes pinturas rupestres, comi mais curry que os indianos na Florida Road, saltei 88m do maior Bunge Jump do mundo e, claro, fiz a Comrades.
Na largada, amigos feitos no ano passado se somaram aos feitos desde então: Nishi, Cracrá, Thiago, Bruno, Dionísio, Álvaro, Wilson, Bulka, Farnese (que, diga-se de passagem, terminou os 87km em impressionantes 6h54), Nadjala e os heróis Nato Amaral e Rodrigo João, que haviam cruzado 1700km de bike nos 10 dias anteriores à largada da Comrades em um feito sobrehumano. Aliás, ao longo da prova, companheiros brasileiros não faltaram para aliviar o cansaço a cada km percorrido sob massacrantes 30 graus.
Estava repassando cada um desses momentos, rindo e trocando ideias com a multidão que não parava de incentivar, quando senti o tapinha nas costas do David.
A princípio, estranhei: ele é (muito) mais rápido do que eu, o que significava que estar ali, atrás de mim, era sinal de que algo não estava certo. De fato, ele estava enjoado, travado, com câimbras e já flertando com a possibilidade de desistir da cobiçada Back-to-Back, a medalha extra concedida a todos os que terminaram duas Comrades consecutivas (fazendo assim os dois sentidos do percurso).
Decisão imediatamente tomada: iríamos juntos até o fim. E posso garantir que, para ele, a coisa realmente estava pegando. Correr, mesmo nos trotes mais leves, era uma tortura; nas subidas, uma impossibilidade. Mas fomos, embalados pela multidão que incentivava incessantemente e pela sensação da chegada que se aproximava a cada passo. Cheguei até a ficar com culpa em um determinado ponto, pois o sofrimento do camarada era praticamente inverso à onipresente sensação de alegria a cada passo dado por mim. Para falar a verdade, não lembro de ter me divertido tanto em uma prova ao ponto de ignorar por completo calor, cansaço e qualquer dificuldade física que costuma vir de bônus com esforços como esse.
Não minto que tinha uma meta original, de fazer 10h30. Mas fazê-la significaria deixar o David para trás, algo que seria praticamente um insulto ao próprio conceito da prova declarado em seu nome: comrades, afinal, significa camaradagem. Entendi ali que a meta mesmo deveria ser chegar junto, honrando a ultra, independentemente do tempo.
Assim fomos devorando placas e mais placas de quilômetros, ele brigando com o próprio corpo e eu curtindo cada centímetro de percurso. Nos 7km finais – graças aos céus de pura descida – decidimos seguir em um trote fixo para pelo menos tentar um sub-11. E, de alguma maneira, ambos conseguimos praticamente sem pausa para caminhada, furando todos os postos de hidratação como balas atravessando a savana.
No km final, David tirou uma bandeira do Brasil e me entregou para que eu cruzasse a linha de chegada com ela, no que prontamente aceitei. A essa altura, a vista já começava a ficar nublada com as lágrimas e cada segundo passado na África pairava sobre a mente. Os dois anos dedicados à Comrades, os treinos duros, o mundo de aprendizado e autoconhecimento proporcionado pelas ultras, tudo parecia voar pelos olhos com a velocidade da luz.
De repente, o relógio na linha de chegada apareceu. Se corresse muito, engatando um sprint insano, eu conseguiria bater o meu tempo do ano passado por 1 minuto.
Voei, correndo os últimos 30 segundos como se não houvesse amanhã. E consegui. Ou melhor: conseguimos.
10h53m45s.
Seria o meu adeus a essa prova que tanto me ensinou e que tanto presente me deu ao longo desses últimos dois anos.
A partir daquele instante, com duas medalhas novas penduradas no peito – a da prova e a back-to-back – estava já pronto para seguir adiante com outros desafios por outros cantos do mundo.
E, com elas, encerro o último post deste blog. Ele permanecerá ativo, claro, e espero que toda a pesquisa feita nesse período possa ajudar quem mais quiser perseguir a rainha das ultras. Do meu lado, continuarei postando no www.rumoastrilhas.com, onde pretendo registrar novas metas e desafios alcançados.
Para todos os que me ajudaram nesses últimos anos, para todos os amigos feitos e que reputo como verdadeiros heróis, deixo uma única última palavra que certamente dirá tudo para quem já se tornou íntimo da Comrades: shosholoza!
Republicou isso em Rumo às Trilhas.
Ricardinho, foi bom demais, parabéns mesmo, foi muito bom participar ao seu lado destes dois anos de sonhos e realizações. Graças ao seu Rumo a Comrades, fiquei mais por dentro de todos os desafios que enfrentaria nas duas edições, foi FANTÁSTICO, obrigado pela ajuda, foi um prazer conhecê-lo ao vivo e nos veremos pelas estradas da vida. Um forte abraço do Cracrá. Shosholoza e “Vamo Simbora”.
Foi um prazer te conhecer tb, Cracrá!!! E com certeza nos encontraremos asfalto afora ainda!!
Ricardo,
Vou sentir muita falta desta resenha poética filosófica sobre a Comrades. Que o criador ilumine suas trilhas!!! Ultra abraço e nos vemos no caminho!!!
Dionísio Silvestre
http://correrpurapaixao.blogspot.com.br/
Muito obrigado pelas palavras Dionísio! Essa back-to-back foi o fechamento de um ciclo inesquecível e importantíssimo pra mim – e espero que seja também o início de um novo!