Não havia sequer uma vaga noção de país.
Havia uma terra virgem, selvagem, fazedora absolutista de suas próprias leis. Havia tribos nativas poderosas como Zulus, ao leste, e Xhosas, um pouco mais ao oeste. Havia leões, elefantes, leopardos, búfalos e rinocerontes singrando o continente como seus donos incontestes.
Havia agricultores descendentes de holandeses, os Bôeres (ou Afrikaans), que rapidamente aprenderam que, por aquelas bandas, armas mandavam mais que canetas e papeis.
Havia ingleses tentando manter a duras penas um império que circundava o globo.
Havia ouro e diamante, ainda em quantidade inimaginável, brotando de um solo duro, seco, quase ácido de tão repressor.
Havia malária, febre amarela e doenças ainda desconhecidas do mundo dito civilizado.
Havia o mais absoluto caos.
Esse caos viu nascer e morrer três repúblicas Bôeres independentes – o Transvaal, a Natália e o Orange Free State – todas cercando a colônia britânica do Cabo, uma pérola protegida pelo Cabo da Boa Esperança de um lado e pela majestosa Table Mountain do outro.
Esse caos viu escoarem rios de sangue de bantus, zulus, basothos, xhosas, ndebeles e bapedis em genocídios sem paralelos.
Esse caos viu 22 anos de guerra aberta entre as duas principais etnias brancas da região – os britânicos e os afrikaans – terminarem na consolidação de um país minimamente estável, obediente à coroa inglesa, mas com alguma independência para se auto-governar: a União da África do Sul.
Esse caos viu a violência dentro de suas recém formadas fronteiras se converter de militaresca a policialesca com o surgimento das primeiras leis segregacionistas que acabaram semeando o perverso regime do Apartheid.
Esse caos testemunhou, em primeira mão, o surgimento de um outro caos ainda maior: a eclosão da Primeira Guerra Mundial, em 1914, que tinha o mesmo Império Britânico como um dos seus principais protagonistas.
E, se dezenas de milhares de soldados do império foram recrutados do Canadá à Índia à Austrália para lutar contra os Bôeres no passado recente, era hora da África do Sul ceder os seus à causa britânica.
Era hora de mais guerra.
Era hora de mais sangue.
Era hora de mais morte.
Quase 250 mil sul africanos lutaram na Grande Guerra. Quase 20 mil nunca mais voltaram para as suas famílias.
Ao final de 1918, quando a paz finalmente se instalou no cenário mundial, a África do Sul era um país esgotado de tanto derramamento de sangue.
Em 1919, um dos sobreviventes do conflito, o veterano Vic Clapham, se aproximou da Liga dos Camaradas da Grande Guerra – associação fundada com o intuito de apoiar soldados e familiares traumatizados pelas próprias dores – propondo organizar uma corrida entre as cidades de Pietermaritzburg, no interior, e Durban, na costa.
O objetivo: honrar com esforço físico e mental as vidas dos tantos camaradas que pereceram na Grande Guerra.
A distância: aproximadamente 90km.
Nos primeiros dois anos, a Liga negou a proposta de Vic, considerando-o apenas mais um dos tantos veteranos loucos que circulavam pela sociedade devastada da época.
No terceiro ano, finalmente, eles se curvaram perante tanta insistência decidiram sancionar a prova.
Estava oficializada a primeira corrida em homenagem aos camaradas caídos na guerra – a Comrades Marathon.
Apenas 34 atletas se inscreveram para largar no dia 24 de maio de 1921. Apenas 16 cruzaram a linha de chegada.
Era o começo de uma lenda que duraria até os dias de hoje.
Desde então, exceto apenas pelo período de duração da II Guerra Mundial, a Comrades se repete todos os anos.
Desde então, ela se metamorfoseou para representar eras fundamentais na transformação de um país e de um continente: foi marco de homenagens a novos heróis caídos nos campos de batalhas, dessa vez na II Guerra Mundial; foi símbolo da luta contra o Apartheid até o fim do regime, já na década de noventa; foi o emblema máximo do próprio conceito de perseverança e superação pessoal.
Hoje, mais de 20 mil corredores de mais de 60 países largam na Comrades todos os anos com o objetivo de completar os seus 89km.
89km.
Não 15km, como a São Silvestre, nem 42km, distância oficial de uma maratona.
São 89km: mais de duas maratonas seguidas.
E, todos os anos, 20 mil pessoas – algumas com mais de setenta anos, vale ressaltar – se dispõem a largar para falar com o corpo o que não cabe em palavras ou gestos.
Algumas correm para cumprir promessas.
Outras aproveitam a exposição internacional para chamar atenção para causas que variam da proteção de espécies em extinção à luta contra o câncer.
Muitas correm em nome de entes queridos que já se foram, preenchendo com o próprio suor o doloroso vácuo deixado por suas ausências.
Mas a imensa maioria, de todos os cantos do planeta, corre unicamente para agradecer aos seus Deuses, ancestrais ou ao sempre sagrado acaso pela própria vida.
Não há, no mundo, nenhuma outro evento esportivo tão longo – seu tempo-limite é de 12 horas, todas transmitidas ao vivo pelo principal canal de TV do país – capaz de reunir tanta gente.
Não há, no mundo, nenhum outro evento que tanto simbolize ideais como superação, força de espírito e, claro, camaradagem.
E é em torno dessa mesma rota de 89km que as três histórias deste livro, separadas apenas pelo tempo e pelo espaço, acontecem.
Esse livro promete, hein!
Uma coisa te digo: escrevê-lo está sendo uma experiência incrível!
Muito bom, de uma maneira bem clara e detalhada você descreve a história da nossa Comrades.