A lua ainda brilhava quando, às cinco e quarenta e cinco da manhã, Phil Masterton-Smith se posicionou junto a outros cinquenta e quatro competidores na linha de largada em Durban, naquele 24 de maio de 1930, rumo à cidade de Pietermaritzburg. Estar ali, para ele, já era um feito de proporções bíblicas: ele se celebrava, se congratulava, se sentia abraçando-se a si mesmo enquanto o início não era anunciado.
Estava em êxtase.
Depois do estrondo e da debandada, tudo mudou.
Estava máquina.
No intervalo de menos de um segundo, Phil sentiu o silêncio dominar cada pensamento seu, focou a estrada aberta em sua frente, apagou cada ruído da pequena multidão que se aglomerava na torcida e canalizou todas as suas energias para as suas pernas.
Não que ele tivesse disparado com agressividade: com perfeita noção da distância à sua frente, Phil preferiu ser mais conservador e deixou toda uma série de atletas zunirem à sua frente.
Frank Hayes assumiu a dianteira imediatamente. Wally Hayward, outro novato, agarrou, incomodado, o segundo lugar, enquanto C. F. Munnery contentou-se com o terceiro.
Ansioso, Hayward não queria competir: queria ganhar por léguas de diferença. Ainda dentro dos limites de Durban, ele disparou na frente assumiu a liderança impondo um ritmo considerado suicida tanto pelos demais competidores quanto pelos espectadores. Ele voou.
Em Westville, sua distância para Hayes era de pouco mais de três ou quatro passadas; em Pinetown, já com uma hora e vinte sete minutos de corrida, essa mesma distância havia crescido para cinco minutos inteiros.
O outro novato, Phil Masterton-Smith, estava a essa altura apenas no décimo sexto lugar – mas correndo metronomicamente, sem se deixar levar em nenhum momento pelo calor da competição. Estava atrás – mas parecia não se importar nem um pouco com isso.
Com duas horas e vinte sete minutos de prova, Hayward já cruzava o posto de controle de Hill Crest, no quilômetro trinta e quatro, esbanjando folgados onze minutos de dianteira sobre o novo segundo colocado, Munnery, que, por sua vez, acumulava seis minutos à frente do terceiro, J. Savage. Frank Hayes, aquele que largara em primeiro, já havia desistido da vitória.
Em Botha’s Hill – uma das maiores subidas da prova – Hayward continuou ditando um ritmo alucinante, chegando à cidade de Drummond, já na metade do percurso, em três horas e vinte minutos. Ele não estava apenas rápido: estava em ritmo de recorde.
Atrás dele, no entanto, algo inesperado começava a acontecer: Masterton-Smith, em sua impávida constância, ganhava uma posição atrás da outra. Quando cruzou Drummond, por exemplo, já havia pulado da décima sexta para a sétima colocação.
Sem saber de nada, Hayward cedia ao cansaço que, àquela altura, já começava a cobrar o seu preço, e parou para receber uma massagem rápida nas pernas.
Era a oportunidade que Masterton-Smith esperava.
No instante em que ele ouviu os rumores de que o líder estava cansando, ele acelerou seu ritmo pela primeira vez em toda a prova e começou a passar um corredor depois de outro.
Poucos quilômetros depois, na subida de Inchanga, ele já se firmava na quinta colocação.
Menos de quatro quilômetros o separavam de Hayward, a quem ele perseguia como se fosse um guepardo.
Hayward, por sua vez, era puro sofrimento: com fortes câimbras, ele parou ainda duas vezes para massagens nos postos de Cato Ridge e Camperdown. A cada parada ele balançava a cabeça em sinal de reprovação e tentava, sem sucesso, retomar o ritmo da primeira metade da prova. Estava com medo.
Masterton-Smith farejava isso e, de morro em morro, acelerava o ritmo e se esforçava ainda mais para ignorar as dores que ele também já começava a sentir esfaqueando todo o corpo.
Depois de Umlaas Road, ele já lutava pelo terceiro lugar.
Minutos depois, já estava isolado no segundo.
A briga agora era, oficialmente, entre os dois novatos: o exaurido Hayward e o confiante Masterton-Smith.
Tudo, enfim, se resumiria à decisão estratégica tomada na largada. O que teria valido mais a pena? Arriscar tudo no início ou poupar-se para um final apoteótico?
Essa dúvida, no entanto, estava restrita aos espectadores: nenhum dos dois líderes pensava em nada que não fosse manter-se à frente ou ultrapassar.
Para eles, ninguém mais existia.
Para eles, nada mais importava.
Hayward sabia que estava perdendo território: seu próprio corpo o denunciava a cada vez que olhava para trás, pelo ombro, à procura do predador que o perseguia.
Quando Masterton-Smith o enxergou pela primeira vez, percebeu instantaneamente o medo no ar. Acelerou, deliciando-se em pensamento com o sabor da vitória. Estava movido a esperança.
Ouvindo o grito crescente da torcida, Hayward se apavorou e, adrenalinado, tirou dos céus uma energia invisível que o fez acelerar o quanto pôde.
Quanto mais os dois competidores aumentavam suas velocidades, no entanto, mais lentamente o tempo parecia passar.
Segundos viraram minutos. Minutos viraram horas.
Já enxergando a faixa de chegada, Hayward olhou para trás, viu Masterton-Smith e… tropeçou.
Estava no chão, em pânico, sentindo sua medalha escorrer pelas mãos nos últimos metros.
Todos emudeceram.
Masterton-Smith acelerou.
Hayward se reergueu, digladiando-se com a lei da gravidade.
Havia tempo para ambos, tanto presa quanto predador.
A multidão se inflou, incandescida e boquiaberta com a cena.
Mais imensos segundos se passaram. Imensos.
Cada passo parecia ser dado em câmera lenta.
Cada suor parecia pingar oceanos de esforços.
Cada coração parecia bumbar mais alto que os mais estridentes tambores zulus.
Mas o final era inexorável.
Sete horas, vinte e sete minutos e vinte e seis segundos depois da largada, um Wally Hayward exausto, devastado e incrédulo finalmente cruzou a linha de chegada antes de seu feroz rival: sua estratégia havia funcionado. Aos 18 anos de idade, o novato Phil Masterton-Smith precisaria mesmo se contentar com o segundo lugar.
A distância final entre eles foi de 180 metros – 37 segundos. Nenhuma outra edição da Comrades havia registrado chegada tão apertada até então.
Para Phil, no entanto, aquele segundo lugar que o permitira provar, ainda que por alguns instantes, o sabor da vitória, havia mudado tudo. Era como se, a partir daquele momento, seus sonhos de criança houvessem tomado corpo, pintado o rumo da viabilização, se aproximado da realidade. Ali, ele começava a achar a resposta para uma pergunta que se fazia desde os dez anos de idade, quando viu o mítico Bill Rowan cruzar a linha de chegada da primeira edição, em 1921: como se sente o vencedor de uma prova tão singular quanto a já lendária Comrades?
Curiosamente, essa pergunta não projetou seu pensamento para o futuro, para uma próxima edição da corrida no ano seguinte: ela o catapultou diretamente para a sua infância, para uma época em que vitórias eram escassas e que sua vida parecia uma sequência interminável de perdas.
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