Sem encontrar saída pela voz, as opiniões e visões de mundo de Phil Masterton-Smith mudaram de rota e fugiram pelo corpo: ele se transformara, de repente, em um dos atletas mais versáteis de toda a província de Natal, destacando-se em esportes tão variados quanto boxe, remo, tênis, ciclismo e corrida.
Onipresente nos grandes palcos da época – as competições esportivas – ele começava, aos poucos, a deixar para trás a imagem de lobo solitário e a construir uma popularidade impensável para quem nascera e crescera tão desprovido de perspectivas.
E não seria apenas pelo atletismo que essa popularidade se consolidaria: tão logo saíra do internato, o jovem Phil conseguira um emprego de jornalista no mais tradicional jornal da União: o Natal Witness. Para quem mal conseguia falar, se expressar pelas letras impressas parecia simplesmente perfeito.
Há que se contextualizar aqui o momento em que a voz de Phil Masterton-Smith decidira se materializar pelas suas mãos. Quando ele nascera, em 21 de julho de 1911, a União da África do Sul contava com pouco mais de um ano de idade e as cicatrizes da Guerra dos Bôeres se faziam presentes por todos os lados. A própria província de Natal simbolizava isso: fundada pelos afrikaners como a república independente de Natália, ela caíra rapidamente em poder dos britânicos e, portanto, era a lembrança viva de uma terra repartida entre duas pátrias e visões de mundo absolutamente opostas.
Mas o problema ia além – muito além. Em plena rota do ouro, Natal ficava no coração do lendário império Zulu, à época já em destroços, e sediava um dos principais portos da região, Durban, que ligava a Índia ao sul da África, ambos territórios sob influência britânica. O óbvio resultado disso: um fluxo constante de negros nativos e de indianos do além mar com o objetivo de trabalhar as minas e, assim, escavar as tão sonhadas riquezas coloniais. Os brancos, presos no paradoxo entre a liderança política e a extrema minoria populacional, passaram toda uma série interminável de leis segregacionistas para garantir, sob preconceituosos pretextos raciais, que as maiorias nunca competissem pelas mesmas oportunidades que eles. Era a semente do Apartheid, regime perverso que acabaria se oficializando como política de estado alguns anos depois.
E qual o resultado de tanto ódio transbordando por tantos lados?
Desunião.
Todos desconfiavam de todos. Todos temiam conflitos armados que, de menor ou maior porte, sempre eclodiam em algum canto. Todos tinham suas raivas mais densas sempre na iminência de explodir. Todos tinham muito mais inimigos, fosse pelas guerras do passado, pelas cores das peles ou mesmo pelo mais simples Acaso, do que amigos. Todos, em essência, temiam e detestavam todos.
A imprensa da época, claro, fazia o que sempre esteve habituada a fazer: amplificava a opinião dos seus donos e plantava mais divisão e conflito entre seus leitores. O próprio Natal Witness era exemplo perfeito disso: se, nos primeiros anos do século, o todo poderoso editor-chefe Horace Rose bradava fortemente contra a União da África do Sul e a favor da manutenção do status de colônia britânica tradicional, seu sucessor Desmond Young não economizava esforços para diminuir a tensão entre as duas etnias brancas e, assim, gerar uma espécie de senso de orgulho comum da nova pátria.
Mas, fossem submissos à coroa britânica ou nacionalistas liberais, fossem divergentes sobre grandes questões nacionais ou pequenas mesquinharias cotidianas, as armas dos donos da imprensa eram sempre as mesmas: editoriais acalorados, destaques absolutos para os acontecimentos que corroboravam as suas visões de mundo, ostracismo ou ataque difamatório a qualquer argumento contrário. A verdade em si, as notícias cruas, os fatos, eram essencialmente irrelevantes.
A imprensa, afinal, nunca teve vocação para noticiar realidades gerais: seu papel sempre fora o de garantir interesses extremamente específicos.
Phil, por outro lado, sempre se mantivera caninamente fiel a duas coisas: sua curiosidade pelo mundo e sua submissão à verdade. Ou talvez não fossem, exatamente, duas coisas tão distintas assim: de certa forma, ele usava a sua curiosidade justamente para entender o mundo à sua volta e relatá-lo como ele realmente era, evitando se deixar levar pelas opiniões enviesadas ou ideologicamente comprometidas dos outros. “Nada que não seja a verdade”, ele costumava dizer, “vale a pena ser escrito.”
Não é preciso dizer que um perfil assim, tão ideologicamente preso à pureza dos fatos ao seu redor, jamais teria um futuro muito promissor no mais tradicional (e, portanto, poderoso) jornal do sul da África.
O futuro, no entanto, ainda estava distante demais para aquele Phil Masterton-Smith que acabava de conseguir seu primeiro emprego sério, que finalmente ganhava o suficiente para se sustentar sem precisar abrir mão de suas crenças e que, ainda por cima, via a sua popularidade crescer substancialmente entre os leitores do Witness.
E como ele conseguia isso? Simples: transformando-se em personagem de suas próprias histórias ou notícias, em uma espécie de herói de seus textos. Não bastava relatar o que terceiros contavam a ele: mais do que conhecer a verdade, Phil queria entendê-la em primeira mão, experimentá-la. Queria senti-la para poder sabê-la; sabê-la para poder escrevê-la.
Queria saciar a sua curiosidade sobre o mundo para, a partir daí, relatá-lo em primeira pessoa.
Foi, afinal, a curiosidade sobre os limites e possibilidades do corpo humano que o fez treinar e se destacar em tantos esportes diferentes.
Foi também a curiosidade em torno dos tão fortes elos de camaradagem entre os soldados que o fez se alistar na reserva do exército em 1930.
Foi a curiosidade que nutria sobre a viabilidade de se sobreviver a uma ultramaratona de quase 90km, a Comrades, que o fez se inscrever nela tão logo completou dezoito anos, também em 1930.
E foram os poucos metros que o tiraram a possibilidade de descobrir o sabor da vitória que o fizeram voltar para a competição um ano depois.
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