Capítulo 5: Comrades Marathon, 25 de maio de 1931

“Desta vez, a história será diferente”, Phil repetia para si mesmo enquanto se posicionava na linha de largada, em frente à Prefeitura de Pietermaritzburg.

Diferentemente do ano anterior, agora ele partiria literalmente de casa. Essa alternância de rota, aliás, era um dos grandes atrativos da Comrades para os competidores desde que ela fora concebida: se, em um determinado ano, a largada ocorresse em Durban e a chegada, em Pietermaritzburg (desenhando um percurso de subida do litoral até o interior), no ano seguinte, as cidades se inverteriam e os corredores competiriam descendo do interior até o litoral.

Desta forma, a mesma prova poderia proporcionar dois diferentes títulos a serem disputados – um de subida e outro, de descida – essencialmente dobrando a intensidade da competição.

Para um local como Phil, no entanto, largar de casa seria apenas uma das vantagens: seus feitos poli-esportivos e seu apertadíssimo segundo lugar na Comrades do ano anterior fizeram dele o preferido absoluto de uma torcida que, ansiosa, não parava de gritar “Unogwaja! Unogwaja! Unogwaja!”

Unogwaja. Phil ganhara esse apelido enquanto treinava nos morros do interior de Natal. Nunca gostara muito de treinos mais tradicionais, nas estradas ou em pistas de atletismo. Em sua opinião, eram controlados e barulhentos demais para permitir qualquer tipo de foco.

Os únicos lugares em que ele realmente se sentia bem eram os descampados arredores, as zonas rurais mais afastadas do tumulto urbano.

Lá, entre morros e mais morros, Phil disparava-se em intermináveis sessões de tiros. Lá, entre morros e mais morros, ele podia se concentrar em si mesmo, deixar para trás qualquer traço da civilização branca e se imergir no seu próprio e já tão habitual silêncio.

Lá, no entanto, espalhadas por muitos desses morros, ficavam pequenas aldeias zulus – e os seus membros aos poucos foram se acostumando e gostando de observar aquele branco esquisito que parecia se divertir saltitando pelos matos por horas a fio.

Não demorou muito para que Phil ganhasse seu apelido: em poucos meses, toda a numerosa comunidade zulu já o chamava de Unogwaja – ou “lebre”, em seu idioma. E, como apelidos são contagiosos, demorou menos tempo ainda para que toda a região o chamasse assim, o que acabou acelerando a sua transformação em lenda local.

Precisamente às 5:45 da manhã, Masterton-Smith olhou ao seu redor. Haviam sessenta e cinco corredores alinhados, prontos para disputar o mais sonhado dos títulos sul africanos.

Hayward, no entanto, não estava lá: uma lesão o havia tirado da prova. Aliás, nenhum vencedor de nenhuma edição anterior estava lá – o que não significava que seria uma corrida morna. Ao contrário: nomes já empolgantes como Wallace, os irmãos Savage, Noel Burree, P. J. van Rooyen e, claro, o próprio Masterton-Smith, prometiam uma disputa acirradíssima.

Na hora prevista, a largada fora dada.
George Steere e Albert Marie logo se acomodaram na dianteira, chegando a Umlaas Road em uma hora e vinte e seis minutos – seis minutos inteiros à frente do que fora registrado pelo líder da edição de 1929, A. Cary-Smith.

Toda uma confusão de corredores parecia se embolar atrás deles: Walker, Collety, Lumley e Van Rooyen (uma hora, vinte e nove minutos e trinta segundos); Neethling, Wade, Wallace, Van der Berg, A. Cary-Smith (uma hora, trinta minutos e trinta segundos); C. Cary-Smith, W. Savage (uma hora e trinta e dois minutos). Os treze primeiros colocados estavam, todos, à frente do tempo registrado no mesmo local em 1929.

E Masterton-Smith? Este parecia mover-se com a mesma estratégia do ano anterior, metronomizando-se cuidadosamente pelo percurso.

Quando chegou em Cato Ridge, ele estava em um distante vigésimo segundo lugar, a onze minutos dos líderes que, por sua vez, se perseguiam – e se cansavam – incessantemente.

A partir de Drummond, na metade do percurso, tudo começou a mudar. Não que Masterton-Smith tivesse alterado o seu ritmo em um milímetro sequer: os corredores à sua frente é que começavam a desabar de um em um. Em Botha’s Hill, por exemplo, ele já havia deixado para trás dezesseis competidores e parecia absolutamente intacto.

Em Hill Crest, o field inteiro já estava embolado com Van Rooyen em primeiro (quatro horas, doze minutos e quinze segundos), Strydom em segundo (quatro horas, treze minutos e quinze segundos), W. Savage em terceiro (quatro horas e quinze minutos) e Masterton-Smith em quarto (quatro horas e dezenove minutos).

Se, por um lado, a distância entre ele e o líder era grande, seu corpo parecia impressionantemente fresco – como se a corrida tivesse acabado de começar. Pouco depois de Hill Crest, em um dos raros planos do percurso, ele já tinha abocanhado o terceiro lugar.

Na longa descida de Fields Hill, enquanto as dores musculares castigavam Van Rooyen e Strydom, ele passou os dois com uma segurança contagiante.

A partir dali, toda aglomeração de torcedores que o via gritava seu apelido: “Unogwaja! Unogwaja! Unogwaja!”

Masterton-Smith bebia essa emoção com a calma de quem já conhece seu destino: com o cabelo ainda meticulosamente repartido ao meio, ele simplesmente olhava para a multidão, sorria e acenava.

Enquanto isso, atrás dele, uma outra perseguição começava: Noel Burree, que emergia de uma distante quarta posição, parecia reenergizado e acelerava seu ritmo de maneira surpreendente. Já em Pinetown ele deixou Van Rooyen e Strydom para trás, com um intervalo de tempo grande o suficiente para carros entrarem no percurso e acompanharem, de perto, a perseguição que estava perto de iniciar.

Em Westville, ele já havia diminuído três minutos da diferença para Masterton-Smith.

Na entrada de Durban, mais dez minutos haviam sido eliminados.

Estavam praticamente juntos.

A situação da corrida de 1930 parecia invertida: Masterton-Smith, amedrontado, usava agora todas as suas energias para garantir a vitória; Burree, sentindo a possibilidade da vitória, massacrava cada músculo que tinha para alcançá-lo.

A diferença entre ambos despencou trinta e seis metros, empolgando a multidão como nunca antes.

Na esquina da Estrada do Jardim Botânico, ela caiu para menos de cinco metros.

Masterton-Smith, mesmo embalado pela torcida, parecia não aguentar mais o ritmo.

Burree se manteve firme.

Na ponte de Alice Street, faltando apenas seiscentos e cinquenta metros para a chegada, ele finalmente ultrapassou Masterton-Smith e colocou um punhado de metros e toda uma certeza de vitória sobre ambos.

A torcida, incandescida, invadia a pista de atletismo da chegada, impondo-se como obstáculo natural aos corredores.

Burree desviava.

Masterton-Smith o seguia.

De repente, aproveitando um vácuo, o Unogwaja se catapultou para a frente de Burree e ganhou nove metros.

Este reagiu e acelerou, chegando a dois metros de Masterton-Smith.

Ambos entraram na reta final praticamente empatados: seria um teste de nervos tanto para os atletas quanto para a torcida.

Burree ultrapassou por meio metro.

Masterton-Smith caçou a liderança novamente.

Burree.

Masterton-Smith.

Burree.

A multidão gritava: “Unogwaja! Unogwaja! Unogwaja!”

Ambos se entreolharam, viraram-se para a linha de chegada e voaram com cada átomo de força que restava em seus corpos.

De repente, dois tiros de pistola soaram quase que simultaneamente anunciando o fim.

Com a inacreditável diferença de um metro e meio, no tempo total de sete horas, dezesseis minutos e trinta segundos, Masterton-Smith cruzara a linha de chegada à frente do seu feroz competidor! Vencera Burree por dois – apenas dois – segundos!

Aos dezenove anos de idade, Phil Masterton-Smith se consolidara como o mais jovem vencedor da história da Comrades – marco, aliás, que permanece até os dias de hoje.

Horas depois, no vestiário, o Unogwaja foi até Burree, apertou a sua mão e disse: “Foi uma corrida incrível, essa nossa corrida. Não houve primeiro ou segundo lugar: a margem foi apertada demais para se falar em colocações. Parabéns.”

Enquanto congratulava seu competidor, no entanto, Phil mantinha uma única coisa em mente: correr no ano seguinte e se consagrar como vencedor nos dois percursos da Comrades, algo que faria dele uma incontestável lenda.

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