A origem da lenda das meias vermelhas

Adelboden, Suiça, 14 de junho de 1944

Enquanto Sidney Feinson admirava um horizonte diferente, salpicado de picos nevados, uma única lágrima silenciosa, quase feliz, escorria de seu olhar.

Havia vivido vidas inteiras nos últimos anos até aquele abençoado momento, em que sentia a intensa liberdade praticamente pela primeira vez.

Quase dois anos antes, em 22 de junho de 1942, ele fora capturado por nazistas no deserto Líbio.

Estava, da mesma forma que seus companheiros, esgotado: os meses de guerra que culminaram em uma derrota devastadora foram, provavelmente, os piores de toda a sua vida. A jornada para a Itália também não fora nada fácil: além de prisioneiro, Sidney era também judeu, o que decididamente não contribuíra para que recebesse o mais digno dos tratamentos por parte de seus algozes.

Pouco depois da captura, ele iniciou uma jornada forçada de quase um ano, passando pelos campos de concentração de Tarhuna, Suari ben Adem, Capua e Fara Sabina, já na Itália, até dar entrada no Campo de Ferrera, sob administração alemã, em 17 de abril de 1943.

Ali, ele já não era mais um bravo soldado guerreando contra o exército do lendário Erwin Rommel, a Raposa do Deserto: era um esquálido e combalido prisioneiro de guerra sentenciado a uma eternidade de trabalhos forçados.

Uma eternidade que, na prática, durou cinco meses.

Nesse período, tanto Sidney quanto a imensa maioria dos prisioneiros de guerra dedicavam-se de corpo ao trabalho e de mente à concepção de planos de fuga. Muitos, verdade seja dita, pereciam nesse processo, fosse pela fraqueza de seus corpos torturados e esfomeados, fosse por tiros certeiros que ceifavam tanto seus planos quanto suas vidas.

Mas planos de fuga malfadados dificilmente demoviam os prisioneiros da concepção de novos planos. O que mais eles poderiam fazer, afinal, sem esperança de resgate e com a certeza de que a morte seria apenas uma questão de tempo, como uma espécie de estação de chegada dos seus próprios sofrimentos?

Assim, rotas traçadas até uma sonhada liberdade, das mais simples às mais sofisticadas, eram cotidianamente compartilhadas entre todos, servindo de combustível para que aguentassem os dias tão áridos do campo de concentração.

Eventualmente, no dia 10 de setembro de 1943, uma delas acabou funcionando para Sidney e dois amigos: aproveitando um leve descuido dos guardas providenciado pelo Acaso, eles escaparam por uma fenda na cerca e desapareceram no meio da floresta. Estavam, pela primeira vez em meses, livres.

Livres… mas cientes de que havia ainda um longo caminho a ser percorrido.

E por que lado começariam a percorrê-lo?

Famintos, sabendo-se perseguidos e à beira do desespero, os três fugitivos acabaram discutindo suas opções em tons de voz tão descuidadamente altos que, em instantes, chamaram a atenção de Giovanna Freddi, uma jovem de dezessete anos que, quis o Acaso, decidira passear pela região justamente naquele momento.

Mas quis também o Acaso – ainda bem – que Giovanna fosse uma feroz antipatizante dos nazistas, oferecendo a casa em que morava com sua mãe como abrigo e esconderijo para os fugitivos.

Sem alternativa, eles agradeceram, aceitaram e emudeceram.

Foram duas longas semanas em que, se, por um lado, os três conseguiram se alimentar e se recompor do longo período de cativeiro, por outro, passaram a nutrir um medo colossal de colocar em risco justamente a família que os estava ajudando.

Notícias das tropas alemãs chegavam a todo momento.

Tiros eram ouvidos nas mais variadas distâncias.

Buscas se tornavam cada vez mais frequentes.

Ameaças a qualquer um que ajudasse soldados aliados eram insinuadas em volumes tão claros quanto o medo que objetivavam provocar.

E não era um medo sem base, acrescente-se: se os três fossem descobertos na casa de Giovanna e de sua mãe, eles acabariam naturalmente voltando para o campo de concentração – mas as duas italianas seriam sumariamente executadas por traição.

Em um dado momento, o medo de colocar suas salvadoras em risco foi tamanho que os três negociaram um novo esconderijo: a igreja da cidade, administrada por Don Angelo Pusineri, um padre igualmente contrário aos nazistas.

A história se repetiria: por outras duas semanas, notícias de tropas alemãs indo e vindo contrastariam com a absoluta ausência de rumores sobre os aliados que, àquela altura, pareciam estar ainda em um outro planeta. Da mesma forma, o medo de colocar em risco o padre e, em última instância, todos esses novos e valiosos aliados, começou a embrulhar o estômago de cada um dos três soldados.

Da mesma forma, sentiram-se sem alternativa que não fugir dali.

Don Angelo, no entanto, fez uma contribuição adicional: os colocou em contato com uma organização secreta que lutava incansavelmente para resistir ao Eixo.

Caberia a essa organização viabilizar a rota de fuga até a Suiça, desafio difícil mas prontamente aceito por ela. Havia apenas uma regra imposta: até que tudo fosse organizado, os três deveriam permanecer escondidos de tudo e de todos.

Pactuado isso, eles imediatamente vestiram-se de silêncio e invisibilizaram-se pela noite de Ferrera, disfarçando-se de sombra por cerca de dois meses e meio até receberem a luz verde para partir, já no final de 1943.

O plano era relativamente simples, embora extremamente arriscado: os três iriam escondidos em um carro de Ferrera até Milão e de Milão até as proximidades da fronteira com a Suiça, a partir de onde seguiriam a pé até a pequena cidade de Chiasso, já fora dos domínios do Eixo. O problema: aquela região inteira era fortemente patrulhada pelo exército alemão e qualquer sussurro mais alto, qualquer mínimo descuido, facilmente levaria a uma nova captura, colocando todos em risco.

Era, no entanto, a melhor oportunidade de fuga com a qual haviam se deparado em meses – uma oportunidade verdadeiramente irrecusável.

Entusiasmados, aceitaram.

Na véspera de partir, com os nervos carregados e os corações palpitantes, os três fizeram um pacto, uma espécie de promessa aos enebriados deuses da guerra: se sobrevivessem, passariam a usar meias vermelhas ao longo de todos os seus dias como forma de nunca esquecerem – e sempre honrarem – aquele percurso de vida que estavam tomando.

Agoniados, puseram-se em movimento.

A fuga durou mais de um dia – um período interminável dado o volume de ansiedade envolvido.

Durante todo esse tempo, os três soldados mantiveram-se rigidamente discretos, quase mudos, tanto enquanto estavam no carro quanto depois, enquanto caminhavam rumo ao norte.

Na reta final, foram inevitavelmente metamorfoseando-se em presas irracionalmente assustadas: qualquer mínimo som os tirava do sério, qualquer passo custava o esforço de um ano, qualquer divergência transformava-se em motivo de discussões seríssimas sussurradas entre os dentes.

Brigaram inúmeras vezes. Fizeram as pazes outras tantas. Odiaram-se. Amaram-se. Irmanaram-se. Tudo em questão de horas, de minutos, de nervosíssimos segundos.

Até que, de repente, um grito estridente os apavorou:

“Stoppen!!!”

Todos congelaram: era um grito em alemão.

Estavam incrédulos: seria mesmo possível que, depois de tanto esforço e sofrimento, acabariam sendo recapturados e enviados de volta ao campo de concentração? Seria aquele o trágico fim de uma aventura tão intensa?

Ergueram as mãos, deixando cair o último fio de esperança que carregavam naquele momento. Viram rios silenciosos de lágrimas escorrerem de seus olhos.

Sentiram a fome apertar, conscientes de que, a partir daquele momento, ela apenas aumentaria mais e mais e mais.

Sentiram uma pontada final de saudades de suas casas, de suas famílias, das vidas que levavam antes da guerra e dos sonhos que não seriam mais autorizados a ter.

Suspiraram.

Viraram-se para encarar de frente seus algozes.

Veio um novo susto: aqueles não eram soldados alemães, mas suíços! Não estavam sendo presos, mas sim encontrados e, a partir daquele exato instante, oficialmente libertados!

A incredulidade mudou abruptamente de face.

Identificaram-se aos suíços, sentindo as lágrimas evaporarem como se nunca tivessem nascido.
Olharam-se uns aos outros.

E riram.

Riram as gargalhadas presas no esôfago desde antes de embarcarem para a Líbia, no que parecia ter sido mais de um século atrás. Riram por minutos tão intensos, tão longos, que chegaram a ser considerados loucos pelos seus libertadores. Riram soltos, leves, como se tivessem acabado de vencer o cume da mais alta montanha, o lodo do mais pegajoso pântano, o pânico do mais profundo dos círculos do inferno.

E, rindo, recuperaram as humanidades que há tanto parecia tê-los deixado.

Dois anos haviam se passado entre a primeira captura e a libertação.

“Dois anos que pareceram duzentas vidas”, Sidney pensava consigo mesmo enquanto contemplava os belíssimos alpes em silêncio, naquele dia 14 de junho de 1944.

Depois, percebeu o silêncio lentamente tomar conta de todo o seu corpo, preenchendo sua mente, seu peito, seu olhar.

Estava vazio, flutuando-se no vácuo de si mesmo, sem medo pela primeira vez em muito, muito tempo.

E, do silêncio, começou a sentir uma transformação invisível tomar conta de si: seu pensamento, até então preso no eterno presente, nas pequenas e fundamentais decisões que precisava tomar a cada instante para sobreviver, começava finalmente a mudar de direção e a olhar para a frente, a imaginar o futuro

Pensava no que faria naquela tarde. No dia seguinte.

Em um mês.

Em dez anos.

Viajava a partir do futuro imediato, imaginando, entre risos solitários, onde poderia comprar meias vermelhas para honrar o pacto que fizera com seus companheiros de fuga, até o mais distante dos amanhãs, que incluía a volta ao seu país e a retomada de algo que pudesse chamar de vida.

Como todo sobrevivente, Sidney Fenson eventualmente alcançou a sua imaginação: ele voltou para a sua terra natal, se casou e criou a família com a qual começara a sonhar naquele mesmo dia 14 de junho de 1944, na Suíça.

Ele usou meias vermelhas até o dia de sua morte, aos 82 anos, em 19 de abril de 2003.

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7 comentários em “A origem da lenda das meias vermelhas

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  1. Eu só trocaria “encarar de frente” por apenas “encarar”… que só pode ser de frente… hehehe

    O texto está show!

    Abraço, Nato

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