O frio do velho mundo

Quando fechei a porta de casa atrás de mim, senti como se tivesse me esbarrado em um muro invisível.

Sim, sei que, para quem mora além do conforto dos trópicos, frio é apenas um período do ano. Mas para quem não está acostumado, para quem aprendeu que o inverno é apenas aquele punhado de meses chuvosos que praticamente não afeta a temperatura esculpida pelo sol e pelo sal do mar, o frio é outra coisa.

Aqui, em Milão, saí para correr às 5 da manhã sob um manto de -2 graus. Tudo doeu.

As ruas, desertas, mostravam apenas movimentos que já foram: lambretas e bicicletas derrubadas como dominós de bêbados, pequenos acúmulos de lixo aqui e ali, semáforos abandonados insistindo em coordenar o trânsito invisível. Só meus passos ecoavam: um, dois, um, dois, um, dois.

E assim eles me levaram cidade afora, cortando o Duomo, tangenciando o castelo, margeando jardins e praças e fontes.

Um, dois, um, dois, um, dois.

O frio nem pensava em se entregar. Ao contrário: a cada minuto que passava ele parecia piorar, se acentuar, gritar mais alto com os ossos.

Mas, a cada igreja milenar, a cada praça medieval, ele cedia mais e mais. Correr pelo velho mundo é sempre inspirador.

Mundo velho, mas com ares mais novos que antes. Muros de mil anos, hoje, convivem com pichações enervadas; mendigos esmolam ou perambulam sem rumo; jardins crescem livres, talvez livres demais. A Europa tem andado pouco europeia ultimamente.

Mas, ainda assim, é incrível.

Do meu rumo, fui deixando o centro da cidade e me expandindo em linha reta. Os sons de trams, trens e ônibus sumiram. A noite começou a ceder.

Um estádio apareceu em minha frente: estava no San Siro, palco de tantas decisões e torcidas e disputas e energias.

Dei a volta. Brinquei por ali, encontrando praças e espaços.

E me soltei, ainda com frio, sentindo como se correr só me elevasse ao status de morador único e, portanto, de dono daquele espaço-tempo.

Foram 21km, aproximadamente. Estava com saudade de correr: ultimamente, tenho pedalado tanto que parece que troquei de esporte.

Não troquei. Há endorfinas que só exalam com a corrida – e é dessas que eu mais gosto.

No final, ao abrir a porta de casa, suspirei o frio, respirei a manhã e entrei para o mundo real de novo. Era hora de começar o dia.

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