No início, achei que tudo estivesse em perfeita ordem: não havia dores aparentes, a motivação estava alta e a energia durante o Shosholoza ficou em nível máximo.
Mas aí… já nos primeiros quilômetros, duendes invisíveis subiram pelas minhas coxas e começaram a esfaquear cada pedaço delas – principalmente na parte de trás.
Depois, os quadríceps começaram a arder.
A parte da frente das coxas gritaram uma, duas, três vezes.
Estava até rápido, em pace de sub-10 – mas, depois do quilômetro 20, as dores se tornaram realmente insuportáveis. Ou não… porque, no final, acabei suportando-as.
Mas que foi difícil, foi.
Comecei a alternar corrida com caminhada, buscando depositar no banco o máximo possível de distância. Começou a ficar difícil.
Vieram os primeiros grandes morros. As primeiras subidas. As primeiras descidas.
No km 30 encontrei o apoio do Unogwaja: conversamos e segui, ainda relativamente inteiro.
A partir daí, os quilômetros se lerdearam: demoraram horas e horas e horas.
Poucos brasileiros passaram por mim: passei um pedaço ruim de tempo só.
Mas segui adiante, um passo após o outro.
Veio Drummond, metade do percurso. Continuei.
Um passo à frente do outro, um olho sempre colado aos tempos do cut-off. Até ali, estava com 1h20 de margem de segurança. Perfeito.
Mas a dificuldade aumentava mais e mais e mais.
No quilîmetro 60, já sob dores de intensidade incrível, encontrei novamente o apoio do Unogwaja e recebi um spray mágico da fisioterapeuta nas coxas enquanto caminhava. E, atrás de mim, veio a Lee-Ann, Unogwaja que, assim como eu, estava penando de dores e de solidão.
Resolvemos seguir juntos. Até o final.
Nos apoiamos mutuamente a cada segundo, um encorajado o outro quando sentíamos a positividade indo embora. Nos forçamos a correr o máximo para evitar perder tempo.
As distâncias para os cut-offs diminuíam: caíram para 1h, depois 40min. e isso na mesma medida em que qualquer mínimo trote se tornava fisicamente impossível.
Vez por outra, solt’vamos alguns grunhidos de dor. Lee chegou a deixar cair uma lágrima – mas continuamos.
As descidas eram impossíveis pelas dores nas coxas; as subidas, pela falta de força: eis o resultado de se pedalar 1.650km de ciclismo em 10 dias! E o pior é que a Comrades… bom… a Comrades praticamente não tem plano algum: é tudo subida ou descida.
Nos restava suportar.
Na hora certa, hordas de brasileiros passaram e deram o apoio perfeito, recheado de palavras de encorajamento fundamentais.
Mas tudo tinha limite: faltando 4km para chegar, eu já era praticamente um cadáver. Lee percebeu e foi nesse exato instante que entendi o que significa “espírito olímpico” (ela competiu nos jogos de Londres e no Rio). Mesmo tão fraca quanto eu, Lee puxou energia de algum canto, segurou minha mão e praticamente me puxou pelo restante do percurso. A cada passo, soltava algum comentário motivacional fundamental, mostrando o estádio, o mar, revivendo nossos dias na estrada.
Faltando 1km, utro Unogwaja apareceu: Curwin, exímio ciclista mas que nunca havia corrido mais que uma maratona.
Nos prendemos um ao outro, os três dando as mãos e formando um elo que parecia repartir a energia em doses homogêneas na exata medida.
E, assim, de mão dadas, entramos no estádio.
Em um Moses Mahbida lotado, iluminado, quase assustador de tão colossal. Ouvimos aplausos, gritos, nos vimos nos telões gigantescos.
Não conseguíamos mais correr, mas caminhamos o mais rapidamente que conseguimos. Àquela altura, já aos prantos – principalmente quando vimos o pórtico de chegada iluminado como se fosse o portão de São Pedro.
Quase desabamos de tanto chorar, mas seguimos firmes. Firmes. Firmes.
E, em exatas 11h40m03s, nós três cruzamos a linha de chegada juntos, dividindo tanto abraços quanto lágrimas: o Unogwaja havia chegado ao fim.
Subi a escadaria até a tenda internacional.
Vi minha mulher, Ana Lia, acenando para mim. Desabei mais ainda. Vi minhas filhas, meus sogros, uma tia que veio junto. Recebi o abraço da minha filha mais velha. As mãos estendidas pedindo colo da mais nova.
Por um instante, mal raciocinava sequer o que estava acontecendo de tantas lágrimas nublando os olhos.
Mas, no fundo, mesmo ainda bambo e em condições dignas da mais dolorida e difícil prova de toda a minha vida, entendia: eu havia chegado.
Sensacional!!! Parabéns!!!