Seja qual for a história real por trás da maratona, o fato é que os 42km inventados pelo homem para definir a prova mais sofisticada do atletismo conseguem definir toda a existência humana com uma precisão desconcertante, inigualável.
42 quilômetros.
É como se a vida inteira, do nascimento à morte, se encaixasse nessa exata distância. Não que não se possa ir além, claro: depois dos 42km, já no território das ultras, caminha-se pelo além, pela pós-vida, pela eternidade que se metaforiza a cada passo.
Há todo um novo mundo feito de celestialidades depois dos 42km – mas, assim como na vida real, há que se morrer antes de se provar o paraíso.
E essa morte chega apenas – e invariavelmente – nos 42km.
Neles, afinal, há de tudo. Há a ingenuidade infantil dos primeiros 5km, onde o próprio conceito de colapso por cansaço inexiste; há a endorfina adolescentemente exagerada dos 10km; o senso de realidade dos 21km; a maturidade dos 30; a exaustão absoluta dos 36; a irrestrita entrega da humanidade aos 42km.
E, depois dessa entrega, nenhuma humanidade realmente sobra. Depois dessa entrega, morre-se. Indiscutivelmente, irreparavelmente.
Morre-se.
Simples assim, com direito a todas as dores que almas presas devem sentir nos instantes anteriores às suas libertações.
Só depois é que essas dores se transformam em uma espécie de completude orgulhosa, de senso de missão cumprida, de alívio.
Ainda que restem dezenas ou mesmo centenas de quilômetros a serem percorridos antes de se cruzar a linha de chegada de alguma ultra, nenhuma sensação de alívio chega perto à que se alcança depois dos primeiros 42km.
Só se pode morrer uma vez por corrida, afinal.
Eu tinha me esquecido disso até que, sábado passado, encarei os primeiros 42km desde que voltei da Comrades.
Foi – para dizer o mínimo – dolorido. Dolorido e revelador em um nível quase metafísico.
Às vezes, somamos tantos quilômetros às nossas metas pessoais que esquecemos de respeitá-los como algo muito, muito mais que meras distâncias espaciais.
Lembrar disso fez um bem libertador.
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