Transcendência e o universo quântico dos esportes de endurance

Um amigo me perguntou, no post que escrevi sobre a conclusão da BR, sobre como fiz e executei meu planejamento de prova. Minha resposta foi a seguinte:

O modelo de treino foi relativamente simples: larguei cross-training na reta final e me foquei apenas em corrida, em volume semanal. Em km, minhas semanas finais somaram 80-80-100-150-100-60 e a prova.

Mas sempre me foquei em rodagem semanal como alvo. Meu maior longo foi de 50K mesmo; antes disso, só os 75km da Bertioga-Maresias lá em outubro.

E toda essa parte funcionou muito bem: mesmo com os imprevistos cheguei super bem, inteiro – ao menos muscularmente.

A alimentação foi simples: barras de nozes, castanhas e maçãs pelo caminho, omeletes e “comida de verdade” quando podia. Não gosto e nem uso nenhum tipo de “pó” ou suplemento ou fórmula mágica. A receita é óbvia: quando estou com fome, como comida. E isso também funcionou super bem.

(…)

Só depois que li minha própria resposta é que me dei conta que, de fato, meu maior pico de treino foi de 50km – e mesmo assim quebrado em duas sessões de 25. Longões intermináveis, de 80, 100km? Nenhum.

E isso fez a diferença? Teria conseguido uma performance melhor com mais volume?

Não acredito, até porque foram as assaduras que agiram como vilãs do meu desempenho, nada mais. Fisicamente, inclusive, eu estava me sentindo extremamente inteiro.

Mas como, exatamente, isso é possível?

Acredito que ultras de qualquer tamanho são realizadas muito mais pela mente que pelo corpo. Claro: o corpo precisa estar minimamente treinado, preparado, e demanda cuidados básicos quanto à alimentação e quanto aos “pequenos grandes problemas” que costumam aparecer com as horas de atividade (como bolhas, assaduras etc.).

Mas, no geral, basta que o corpo entenda que ele deve obediência plena ao que quer que a mente comande e pronto: ele rapidamente entra em uma estado quântico de abstração, como que saindo de si mesmo, e transforma impossíveis em normalidades.

Lembro-me de um trecho na BR em que, sofrendo com as assaduras, me dei conta de que eu não sentia mais uma única dorzinha muscular em nenhuma parte do corpo: estava, nesse aspecto, tão inteiro quanto na largada, que ficara algo como 150km atrás de mim.

Mais: chegava até a comemorar quando via uma subida mais intensa à minha frente, pois nela poderia acelerar um pouco mais uma vez que, em inclinações, eu me encaixava facilmente em uma postura que evitava fricção nos pontos doloridos do corpo.

E mesmo se considerarmos as dores das assaduras, não havia nada que pudesse ser chamado de sacrifício naquela jornada toda. Cheguei, claro, a ter diálogos acalorados comigo mesmo – mas saía de cada autodiscussão com um balanço positivo ao dosar sofrimento físico versus estado de bênção mental gerado por toda aquela experiência na Serra da Mantiqueira. Foi esse balanço que me fez cruzar a linha de chegada em Paraisópolis – e é esse mesmo balanço que costuma me levar a qualquer linha de chegada de qualquer prova mais longa, incluindo Unogwaja, Comrades, Bertioga-Maresias, Indomit, Caminhos de Rosa e tantas outras pelas quais costumo me aventurar.

Há, creio, uma palavra para isso: transcendência.

E o que ela significa nesse contexto? Uma espécie de estado que chegamos em que tempo e espaço (no meu caso, 240km e 58 horas) se fundem em um único caminho que atravessamos em alfa, sem que as dificuldades físicas do que parece ser impossível sequer participem do percurso.

Não é que correr assim, por tanto tempo, não imponha os seus impactos ao corpo: somos matéria orgânica, somos carne viva, pulsamos e respiramos e sentimos como qualquer ser vivo. Mas a grande questão é que, uma vez nesse estado, conseguimos fazer com que nosso corpo deixe as leis da física em um segundo plano tão distante, mas tão distante, que chegamos ao ponto de dobrá-las de acordo com a nossa vontade.

E essa transcedência, essa capacidade de sair das leis da física e de mergulhar em um universo quântico onde espaço e tempo fundem-se em uma única dimensão, em “espaçotempo”, é uma das experiências mais mágicas que podem existir.

Mágica e, acrescento, acessível a toda e qualquer pessoa que estiver disposta a reentender a própria vida como algo muito mais metafísico que a nossa natureza animal, algo muito mais espiritual, abstrato e comandável por forças de vontade conscientes.

Talvez esse seja o principal treinamento para qualquer ultra já a partir dos 50km, onde paces e pressões por tempo costumam contar menos que em provas menores: aprender a se reentender e a caminhar pelo “espaçotempo”. Quando se faz isso, todo e qualquer desgaste físico que costuma assustar atletas que se deparam com provas fora do convencional simplesmente desaparece do campo de visão.

Quando se faz isso, obtem-se em troca essa tão rica experiência de explorar os corredores mais inusitados da nossa própria espiritualidade.

Quando se faz isso, até as características físicas de uma prova evaporam, dissolvem-se na inutilidade. Resta apenas você e esse percurso mental pavimentado de ruas e trilhas e percorrido fluidamente enquanto tudo ao seu redor, do cotidiano prático ao próprio movimento do universo, simplesmente cessa de existir.

É uma das experiências mais incríveis e determinantes que se pode ter, um dos maiores presentes dados pelos esportes de endurance.

Aliás, esses esportes de endurance, que nos entregam caminhos extensos e intensos o suficiente para nos tirar do nosso corpo e nos integrar a uma dimensão tão bela e inusitada do universo, são uma das mais incríveis descobertas metafísicas da humanidade.

Se você ainda não corre, pedala ou nada por horas a fio, recomendo que comece o quanto antes.

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