-20°C

Tinha uma corridinha de cerca de 10K para fazer.

Perfeito: estava em uma pequena cidade do norte dos Estados Unidos, toda coberta por uma neve tão fofa quanto bucólica, em um nascer do sol esplendoroso. Quer convite melhor para um corredor?

Me arrumei. Calça, segunda pele, blusa de manga comprida, casaco, luvas, buff, gorro, óculos de sol, meia e tênis.

Estava exausto quando terminei de me arrumar, aliás. Exausto, mas hipnotizado pela beleza da paisagem que se estendia para fora da confortável calefação de onde eu a observava.

Abri a porta da rua: tomei um murro do frio.

Soprei-o para longe de mim com aquele ar de quem se orgulha de desafiar o que quer que venha pela frente.

Enchi o peito e saí.

A temperatura? -20°C.

Isso mesmo: menos vinte graus celcius.

Ainda assim, trotei leve feito um… bom… feito um cágado.

Parecia que a rua estava descalibrada: com a sensação de esforço de um Usain Bolt eu parecia me mover tão rapidamente quanto o hidrante do meu lado.

O ar limpo, puro, que parecia cobrir a neve fofa? Rasgava meu pulmão como um bisturi invisível.

Nada daquela beleza toda combinava com o que estava sentindo. Nada.

Já irritado com a paisagem, apressei o pace e me esbafori rua afora – quase dando com o nariz no asfalto algumas vezes por conta das poças de gelo que se escondiam no chão.

Até que meus dedos das mãos começaram a formigar.

E depois os dos pés.

E depois o nariz.

Horas pareciam ter se passado enquanto eu combatia tão bravamente aquele frio exótico para quem nasceu no meio dos trópicos. Horas? Dias!

E eu ali, firme.

Orgulhoso da minha coragem e da minha brutalidade por encarar aquela temperatura tão mal educada!

Mudava de lado da calçada, desviava morros de neve, procurava respirar mais suavemente para não dilacerar os pulmões inflados.

Pulava gelos, balançava dedos para que eles continuassem ali, comigo, tentava aumentar o pace.

Fazia contas mentais: se saíra de casa pouco antes das 7, ora… já devia estar quase na hora do almoço!

E eu ali, brigando tão bravamente contra o frio, tão herói, tão todo-poderoso!

Em uma tentativa de ampliar ainda mais a autoestima, decidi conferir quantos quilômetros já havia rodado.

“Hein?!”, gritei para mim mesmo.

Olhei o GPS de perto: havia corrido 1,5km.

12 minutos haviam se passado desde que eu saíra de casa. 12-míseros-minutos.

Tirei as luvas para bater no relógio e ver se ele estava mesmo certo. Conferi a hora no celular. Olhei ao redor.

1,5km. Mal havia saído do bairro.

Subitamente derrotado, fiz um check-up: estava cansado, com frio e sentindo meus dedos dos pés doloridos como poucas vezes antes.

Dei meia volta.

Corri já meio amedrontado, imaginando todas aquelas cenas em filmes em que alpinistas perdem narizes, dedos, orelhas.

Entrei em casa correndo como um fugitivo.

Me aqueci.

Minutos passaram.

Fiz os sete envergonhados quilômetros restantes em uma esteira.

Tão herói quanto um esquilo assustado.

2 comentários em “-20°C

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  1. Oi, Ricardo! Agora em novembro estivemos na Nova Inglaterra e tive sensação similar (embora não extrema). Fiz três corridas, em dias diferentes, a -7 graus, dos treinos de uma hora, e a última, uma prova de cinco quilômetros, logo após o dia de ação de graças, na cidade de Amherst, em New Hampshire. Correr no frio é bom, mas em frio extremo já fica bem difícil. Nem de longe cheguei ao frio experimentado por você. Lá ainda pegamos -15, mas não em um dia de treino, e vi como o pulmão parece se rasgar com a temperatura. Mas é uma experiência interessante, valeu por compartilhá-la!

    1. É, esse frio é um pouco demais pra quem nasceu no calor! Mas… como vc bem colocou, toda experiência sempre é válida! Amanhã vou para alguma montanha aqui perto onde o frio deve estar semelhante. O plano é colocar mais roupa e tentar de novo!

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