Comrades 2019

Lá pelo km 60, enquanto conversava com um senhor que estava na sua 42a Comrades, olhei para o lado e vi Thamar – Unogwaja de 2013 e chefe da equipe que está sendo formada para 2020. “Thamar!”, gritei, entusiasmado por tê-la encontrado.

Olhei para o outro lado e lá estavam Lee e David, Unogwajas do ano passado comigo.

Dali em diante a Comrades foi pura festa.

***

O começo, no entanto, foi um pouco mais árduo que eu imaginava – em grande parte por conta de algumas gotas de arrogância com a prova por tê-la concluído razoavelmente inteiro, no ano passado, depois de pedalar os 1.700km do percurso de Cape Town até Pietermaritzburg.

“Será bem mais fácil correr a Comrades com pernas descansadas”, repetia comigo mesmo nos dias que antecederam a largada.

E até foi “bem mais fácil” – o que não significa que tenha sido “fácil”. 90km pelo Vale dos Mil Morros, no coração do reino Zulu, nunca o são.

Nos primeiros quilômetros, ainda na escuridão das ruas de Durban, tudo estava leve. Pernas descansadas, energia a mil, papos a dois mil com os outros brasileiros e alguns dos tantos, tantos sul-africanos que energizavam o percurso desde os cantos de Shosholoza.

Com o tempo e com os morros – os intermináveis morros de um percurso com quase 2 mil metros de elevação, a maioria concentrado na primeira metade – o corpo foi sentindo o peso. “Com ou sem bike, essa prova é muito, muito dura”, falei para mim mesmo.

E é.

De todas as ultras que já fiz, de trilhas de 50km aos 240km da BR135+, a Comrades é a que mais testa a alma.

Pela sua distância, os sempre desafiadores 90km.

Pelo volume de subidas e descidas, massacrando o corpo sem parar.

Pelos tantos pontos de corte por tempo ao longo do percurso, assustando qualquer um que não saiba lidar tão bem com a pressão.

Pela multidão de mais de 400 mil torcedores que se alinham de Durban a Pietermaritzburg buscando entusiasmar os corredores.

Pelas tradições – as tantas tradições – que se apresentam no percurso dando à prova todo o peso de quase cem anos.

As tradições

Há o canto de Shosholoza entoado por uma multidão antes da largada.

Há o canto do galo, “gritado” por Max Trimborn em 1948 para anunciar a largada, e posteriormente gravado e reproduzido desde então às 5:30 em ponto.

Há os nomes dos cinco grandes morros, todos devidamente demarcados por placas permanentes: Cowies Hill, Fiels Hill, Botha’s Hill, Inchanga e Polly Shortts.

Há o Wall of Honour, um muro imenso repleto de placas em homenagens a corredores da Comrades de todo o mundo.

Há Arthur’s Seat, um rocha em forma de cadeira onde Arthur Newton, vencedor da Comrades de 1922 (além de outras quatro edições), costumava parar de correr para fumar seu cachimbo antes de prosseguir. Até hoje os corredores param e reverenciam o local como forma de atrair boa sorte para o restante da corrida.

Há as crianças deficientes da Escola de Ethembeni que, paralíticas ou cegas, algumas com uma esperança devastadoramente pequena de futuro, se alinham para encorajar os corredores.

Há outras crianças de colégios internos sul-africanos que, toda Comrades, posicionam-se em locais específicos, todos vestindo roupas sociais, para encorajar os atletas.

Há os Green Numbers, corredores com mais de 10 Comrades no currículo – alguns, já avançados sexagenários, com mais de 40 – que se efetivamente são uma tradição viva da prova.

Tudo é tradição aqui na África. Em parte, é daí que vem a magia dessa prova.

Mas ultras são sempre pessoais

Em que pese tanta tradição e tanta multidão, toda ultra é essencialmente uma prova pessoal. Porque ela depende do seu estado de espírito, da sua capacidade de capturar a energia da atmosfera e transformar em endorfina, em potência e felicidade.

E, durante um bom punhado de quilômetros, a minha prova parecia difícil. Meu treinamente, que tanto misturou triathlon com ultra, mostrou-se ineficaz para uma prova que exige fidelidade absoluta. Minhas pernas sentiram. Meu estômago começou a recusar a comida que havia levado para o percurso. Minhas costas começaram a doer.

Até os tantos brasileiros que aqui estavam sumiram quando concluí que companhia talvez fosse a melhor solução.

Vi a minha meta pessoal de fechar a prova na casa das 10 horas evaporar quando o ônibus das 11 horas – um grupo de corredores guiado por um voluntário cuja responsabilidade é fazer todos chegarem no tempo determinado – passou voando por mim.

Mas encontrei, em um ou outro lugar, alguns amigos com quem conversar e aliviar um pouco as dores. Funcionou.

Depois nos separávamos e seguíamos adianta, cada um na sua prova.

Em ciclos tão constantes quanto os morros.

Muitos morros.

Já até começava a duvidar da chegada a tempo quando, enquanto conversava com um senhor que estava na sua 42a Comrades, olhei para os lados e vi Thamar, Lee e David.

A chegada

Aquele momento foi um divisor de águas.

O tipo de irmandade forjada entre os Unogwajas é tão poderosa e intensa, resultado de tanta endorfina e dor e superação compartilhados, que poucas coisas parecem mais fortes. Isso ficou claro para mim quando na minha própria feição, que mudou de sofrimento para pura alegria em um espaço de segundos.

A partir dali, tudo mudou.

Percorremos juntos os quase 30km restantes, jogando conversa fora, rindo, falando de planos futuros. Andar? Todas as dores evaporaram no mesmo instante e corremos muito, mas muito mais do que sequer imaginávamos possível.

Até que, quase que de repente, avistamos a placa de 3km restantes.

E seguimos.

2km.

1km.

Avistamos o gramado da chegada.

As bandeiras.

A torcida.

Nos demos as mãos, os quatro.

E corremos juntos, como um só, até cruzarmos a linha de chegada em uma mescla de cansaço com a mais pura emoção.

Foi absolutamente mágico.

Tudo.

A chegada, emocionante como poucas.

O percurso, cujas tradições históricas serviram como metas menores dentro da grande meta de completá-lo.

Os amigos, brasileiros e sul-africanos, novos e velhos, que foram lá testar a própria gana de viver.

A onipresente torcida.

Os lendários morros.

A paisagem embasbacante de kwaZulu-Natal.

Em suma, a Comrades.

9 comentários em “Comrades 2019

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  1. Impressionante essa experiência. Excelente prova. Obrigado por compartilhar conosco.

    Grande abraço deste fã de longa data.

  2. Oi, Ricardo! É por relatos emocionantes, tão sinestésicos quanto sensíveis como esse que sou uma leitora fiel. Na verdade, já li seus dois blogs inteiros, rs. Literalmente. Agradeço a companhia por várias horas nos intervalos da vida, inclusive. Aliás, não só por posts como esse, por todos. Pela sua forma apaixonante de escrever, pela espontaneidade dos posts, que seguem unicamente os seus próprios parâmetros, pelas dicas sobre corrida, pela motivação, pela proximidade com tantas coisas que te ler me traz. É um prazer poder acompanhar a tua jornada, obrigada por compartilhar! Que venham muitas novas aventuras e Kms para nós. Só uma coisa, eu sou cega e adoraria que você colocasse uma breve descrição nas imagens para eu saber do que se trata.Oi, Ricardo! É por relatos emocionantes, tão sinestésicos quanto sensíveis como esse que sou uma leitora fiel. Na verdade, já li seus dois blogs inteiros, rs. Literalmente. Agradeço a companhia por várias horas nos intervalos da vida, inclusive. Aliás, não só por posts como esse, por todos. Pela sua forma apaixonante de escrever, pela espontaneidade dos posts, que seguem unicamente os seus próprios parâmetros, pelas dicas sobre corrida, pela motivação, pela proximidade com tantas coisas que te ler me traz. É um prazer poder acompanhar a tua jornada, obrigada por compartilhar! Que venham muitas novas aventuras e Kms para nós. Só uma coisa, eu sou cega e adoraria que você colocasse uma breve descrição nas imagens para eu saber do que se trata.

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