Cinco da manhã.
Sob uma camada fria de neblina, na escuridão absolutamente deserta de Ílhavo, no norte de Portugal, saio para uma corrida solitária.
Ainda será escuro, pelo menos até as 6:30 da manhã, e sei que terei como companhia apenas eventuais latidos de cachorros mal humorados que cismam em rosnar para quem quer que jogue decibéis, ainda que mínimos, sobre seus silêncios. Ignoro isso e sigo meu rumo.
Eu, meus passos e os eventuais latidos.
Seguir meu rumo, aliás, talvez não seja a melhor das expressões. Lá por aqueles ermos, tão distantes dos tumultos das metrópoles que chegam a parecer outras eras, prefiro correr sem destino certo. Vou me enfiando por ruelas estreitas, seduzido por igrejas brotadas pelos séculos ou casarões que já tiveram seus momentos de glória; me guiando pelo cheiro nostálgico das gafanhas que pintam tudo de cor-de-mar; me movendo pelo puro motor da endorfina.
Não faço tiros, intervalados, fartleks. Esse tempo em que corro não deve ser pautado pelos microscopismos do relógio e sim aproveitado em sua inteireza, em sua grandiosidade, com o devido respeito aos seus séculos de imutabilidade.
Estou de férias com a família inteira no interior de Portugal. Mas a família inteira, a essa hora, está ainda dormindo, ignorante desse tempo tão particular em que me insiro.
Esse Tempo em que saio sozinho pelas aldeias portuguesas – isto é, acompanhado apenas dos eventuais latidos dos cachorros mal humorados – é só meu. Só eu estou aqui, vendo os primeiros raios de sol acenderem os muros preguiçoso, manchados com o cinza do passado e cansado das memórias que carrega em seu interior.
Só eu penso, nesse momento, o tanto que já deve ter acontecido nas casinhas pequenas, nas quintas gigantescas, nos quintais abandonados. Só eu estou aqui para testemunhar os fantasmas que perambulam entre as ruelas e a minha imaginação, entre o que vejo e o que percebo, entre o que aconteceu e o que deve ter acontecido.
Ninguém, absolutamente ninguém cruza o meu caminho nessas quase duas horas de corrida por uma, duas, três ou mais vilas e aldeias. Ninguém, isto é, exceto meus próprios pensamentos tão vagarosos quanto os tempos daquelas paragens e os latidos dos cachorros mal humorados.
Há um certo privilégio nisso tudo: aqui, no lento amanhecer desse lento interior português, o Tempo parece disposto a se mostrar de carne e osso e a conversar diretamente comigo. Se houvesse uma pessoa a mais ele provavelmente se dissolveria na sua própria quarta-dimensionalidade; como não há, ele deixa a sua timidez de lado e me mostra seus segredos todos.
Já havia me entendido com esse Tempo em outras ocasiões. Férias são sempre perfeitas para isso: corredores precisam treinar, afinal, antes da família despertar para um dia cheio de museus e andanças e divertimentos gerais. É nesse antes que o corredor tem seu tempo para falar com o Tempo; é nesses momentos que acabamos conhecendo lugares secretos, desertos, praticamente esculpidos de acordo com as imaginações que emprestamos a eles. Em tempo real.
E essa atividade, essa conversa secreta e individualíssima com o Tempo, é sempre inesquecível. Faz valer o cansaço no corpo martelado pelo turismo, a preguiça de abrir os olhos antes do resto do mundo, a falta de destino palpável nas próximas horas.
São férias solitárias tiradas em meio às férias reais, convencionais.
E são absolutamente fundamentais para manter o sorriso estampado na face de qualquer corredor.

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