Como foi pedalar a maior montanha do mundo da varanda de casa
O sol ainda não havia nascido quando apareci na varanda, em pleno nível virtual do mar, para preparar a largada.
Me pesei: 77kg. A quarentena já havia feito seu estrago.
Liguei o Zwift e conferi os parâmetros: ajustei meu peso no sistema (que ajuda a definir a velocidade virtual); liguei o ventilador; abri as janelas; me certifiquei de que Gatorades e Red Bulls e caraminholas com água e barras de castanhas estavam à mão; escolhi o percurso com a rota mais curta até a base da Epic KOM Reverse, o nome da subida que seria o meu Everest; montei na bike e comecei.
Vi o sol raiar com as primeiras pedaladas, já iniciando com quatro subidas ininterruptas para entrar no ritmo que definiria o dia. O sol, aliás, raiou sincronizado: enquanto a varanda começava a exibir o parque vazio e o mundo arrasado pelo Coronavírus, o Zwift esbanjava um amanhecer belíssimo a partir das curvas da estrada da montanha.

Depois de quatro subidas seguidas – pouco menos de 2 mil metros de subida acumulada -, quando a família estava começando a sair da cama, parei por alguns minutos para esticar as pernas e tomar um café. Pequenas pausas para descanso, em casos assim, são absolutamente fundamentais.
Pausas, no entanto, precisam ser pequenas: ainda havia muita montanha pela frente. Depois de 10 minutos estava já de volta à bike fazendo os pedais girarem contra a resistência de novas subidas.
E assim o ritmo foi tocando.

Apoios ao longo do caminho
Entrei no Zoom da assessoria, a BR Esportes, que foi uma força de motivação até o último minuto do desafio.
Recebi um acompanhamento fundamental da Ana Paula, Unogwaja 2020, que se atuou como garantidora do meu estado físico.
Tive um suporte oficial familiar feito de caraminholas permanentemente cheias, deliveries de café, squishes de papel motivadores sorrisos empolgados sempre bem vindos.
E pedalei.
Pedalei.
Pedalei.
O desafio em blocos

Preguei, no armário, um cartaz com a programação do desafio. De forma geral, teria 1h30 para fazer blocos de 2 subidas cada (exceto no primeiro bloco, com 4).
Após cada um deles faria uma pequena pausa para esticar pernas e braços, tomar alguma coisa e respirar.

Bom… como podem ver pela foto acima, tirada depois do desafio, o tempo não foi exatamente seguido: acabei precisando de um total de 2h30 a mais.
De toda forma, foi uma programação que funcionou bem – e que provou que fora ou dentro de casa, ultra é ultra e sempre pode ser guiada por um planejamento mínimo.
Os pequenos grandes marcos
A BR135, uma das ultras que mais amo correr, tem seu percurso marcado por pontos que, ao serem alcançados, sopram motivação pura: Pico do Gavião, Serra dos Lima, Consolação etc.
A Comrades, idem: Wall of Honour, Arthur’s Seat e cada um dos seus cinco grandes morros, todos devidamente assinalados com placas oficiais lustrosas.
O Everesting não seria diferente: 100km, 100 milhas, 180km que caracterizam a perna de bike de um Ironman.
2.000m, 5.000m, 7.000m de subida acumulada.
Cada um desses marcos foi devidamente comemorado, inspirado pulmão adentro, mentalizado.

Um de cada vez, como pequenas metas que, na prática, definem os grandes desafios.
O Vale das Sombras Caídas
Mas isso não significa que tudo tenha sido flores.
Ultra que é ultra, afinal, sempre inclui um mergulho àquela zona sombria, depressiva, interminável: o Vale das Sombras Caídas.

Para mim, esse vale apareceu logo depois dos 5 mil metros escalados. Estava na Terra de Ninguém, tão longe da largada quanto da chegada, exausto, com um pouco de náusea, sentindo o peso de cada minuto como se fossem horas, dias, semanas.
Nada ajudava: nem as mensagens de motivação dos amigos, nem os comentários espantados que volta e meia apareciam nos Stories que eu postava, nem as pausas, nem a Netflix. Nada.
Mas também não posso dizer que esse Vale é um desconhecido meu. Desde que fiz minha primeira ultra, lá em 2014, o conheci como aquele local que todos eventualmente precisam atravessar ao longo dos seus caminhos, dos seus percursos de vida metaforizados em pesados quilômetros.
E, verdade seja dita, estava até com saudade de passar por aquilo. São poucos os sentimentos de realização melhores do que o que surge quando deixamos as sombras de lado e chegamos bem do outro lado.
E quanto tempo durou essa travessia? Mais ou menos 6 blocos de subida: cerca de 7 horas. Sete horas pedalando no escuro.

Em um determinado momento a Ana Paula me perguntou, pelo Whats, se eu estava pensando em parar. Minha resposta foi instantânea: “de jeito nenhum”.
Por mais difícil que aquilo estivesse, não havia mesmo nenhum motivo para desistir do pico: o corpo estava relativamente intacto e o espírito precisava apenas de um remendo, de uma mão. E a “mão” veio justamente dessa pergunta.
Depois dela, tudo mudou de figura.
Respirei mais fundo.
Olhei para o cartaz de planejamento e me certifiquei de que a maior parte do caminho havia ficado para trás.
Me concentrei nos próximos pequenos marcos.
Abaixei a cabeça forçando um sorriso.
Aumentei a quantidade de watts pedalados.
E, de maneira decidida, deixei o Vale para trás e saí do outro lado, renovado, motivado até o extremo e confiante para encarar os quase 2 mil metros de subida restantes.
A reta final
Dali até a chegada a história foi uma só: espírito renovado e altamente energizado contrastando com um corpo que se exauria mais a cada girada do pedal.
Mas o corpo… bom… o corpo, em última instância, sempre cede à mente. Basta ela querer e ele obedece.
Foi o que aconteceu – ajudado, claro, pelo apoio de mulher e filhas, do restante da família espalhada pelo mundo, dos colegas da BR Esportes, da parceira de jornada Ana Paula Dias.
E assim, já nas últimas badaladas do dia 2, quando o relógio se aproximava da meia noite, o Everesting foi devidamente finalizado.
8.848 metros de subida em 15h30 pedaladas (ou 18 horas, se considerar os tempos de descanso).
257,7km rodados.
Litros de suor deixados pelo caminho (ou melhor, na sala).
E muita, muita felicidade na linha de chegada.


A chegada que define tudo
Ultras, seja correndo, pedalando ou nadando, são sempre definidas pelas suas chegadas.
São as chegadas que nos permitem olhar, de lá do topo do Everest, todo o esforço necessário para a escalada.
São as chegadas que nos permitem entender o quanto precisamos mergulhar nas nossas próprias trevas internas, nos nossos Vales das Sombras Caídas, para sairmos pessoas melhores, mais conscientes de quem somos e do que somos feitos.
São as chegadas que nos mostram que não há nada físico que não possa ser domado pela mente.
São as chegadas que coroam as jornadas, que dão brilho a ela.
Porque na prática… na prática, pedalar por um dia inteiro dentro da sala pode parecer algo sem sentido, uma espécie de arroubo de masoquismo infrutífero. Mas não é – principalmente nos tempos tão críticos que estamos vivendo.
Mergulhar em uma ultra, principalmente nesses dias, é se lembrar de quem somos e do que somos feitos. E não há remédio melhor para enfrentar uma quarentena do que isso.

(E, claro, sempre ajuda ter o nome oficialmente inscrito no Everesting Hall of Fame)
O esforço físico:









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