Fisiologia e foco na recuperação
Feito o relato filosófico da UB515, é hora de montar uma espécie de relato fisiológico mergulhando de cabeça nos dados.
Dados, afinal, foram uma parte essencial de todo o treinamento. O acesso aos dados, inclusive, mudaram todo o meu ritmo de treinamento.
Pandemia e treinamento
Não escreverei, claro, o óbvio. Pandemia já é associada a angústia, a estresses inimagináveis, a uma série de negatividades já largamente sentidas e compreendidas por qualquer humano minimamente racional. Meu ponto aqui é outro: os hábitos forçosamente adquiridos em consequência dela.
Para mim, o home-office mudou tudo.
Nada mais de acordar cedo para perder horas e horas no trânsito caótico de São Paulo. Nada mais de deixar a produtividade escapar pelas salas de espera de reuniões presenciais (já que as virtuais raramente atrasam e geralmente são muito mais diretas, práticas). O home-office, enfim, me deu de presente um tempo que eu nem sabia que estava desperdiçando.
E o que fiz com o tempo? Aprendi a dormir.
Para que acordar às 4 da manhã duas vezes por semana para pedalar na USP se posso fazer isso do rolo, em casa, na hora do almoço (obrigado, Zwift)? Para que voltar correndo do trabalho para casa, em uma tentativa de enganar o trânsito, acumulando cansaço justamente nas horas finais do dia, quando posso trotar pela rua no mesmo meio dia dos dias alternados aos que pedalo? E nadar? Com piscina acessível, dentro do condomínio (que, sim, é uma bênção), bastava encaixar um horário qualquer entre reuniões e pronto.
A pandemia trouxe o home-office. O home-office trouxe o tempo. O tempo me permitiu descobrir que o descanso é muito mais valioso do que se pode imaginar.
Como já comentei em algum outro post, aprender a descansar significa entender que não existe overtraining; existe under-recovery. Para uma prova como a UB515 (ou a Comrades ou qualquer outra ultra, de qualquer modalidade), esse aprendizado muda absolutamente tudo.
Whoop
Aqui entra o Whoop (cujo funcionamento já detalhei neste post aqui). Na medida do possível, usei os dados do meu HRV e de Recovery para determinar tanto o quanto precisava descansar em relação à intensidade pretendida do meu treino no dia seguinte.
Esse tipo de enfoque usando os dados do corpo para co-definir o regime de treino foi inacreditavelmente eficiente. Digo isso por comparação de percepções. Quando estava treinando para o Unogwaja, era quase habitual eu atravessar as semanas feito um zumbi, sem energia para absolutamente nada e rezando por uma cama (que, diga-se de passagem, nunca vinha em quantidade suficiente). E, por mais que os treinos do Unogwaja e UB515 tenham sido muito semelhantes do ponto de vista de horas semanais, para a UB eu raramente me sentia exausto.
Tinha as dores musculares óbvias, terminava os pedais mais longos moído, mas, depois do descanso tecnicamente compatível com o esforço (sendo esse volume ideal de descanso indicado à perfeição pelo Whoop), estava renovado e cheio de energia para iniciar o dia seguinte com gás total.
Resumo da ópera: o que me preparou para a UB515 foi tanto o treino (que será alvo de outro post) quanto, e talvez principalmente, o peso que acabei dando ao processo de recuperação.
Gráficos e mais gráficos: o suor em números
Há dois conjuntos de dados aqui: o percentual de recuperação (recovery) e o esforço (strain), medido em uma escala exponencial de 0 a 21 (onde 21 é praticamente a morte). Ambas as métricas são do Whoop e consideram principalmente a variabilidade de frequência cardíaca (HRV, veja mais aqui) e uma série de outros parâmetros cardíacos acumulados ao longo do dia.

Em 6 meses de treinamento, apenas 13 dias foram “vermelhos” (ou seja, com uma recuperação inferior a 33%). Em contrapartida, 75 dias tiveram esforço entre 18-21 (níveis significativamente altos). Na quase totalidade desses dias a recuperação estava verde (acima de 67%) ou amarela alta (entre 50-66%). Na maioria dos dias seguintes aos de alto esforço, o tempo dedicado ao descanso foi igualmente alto. Esse foi, em síntese, o método: chegar recuperado nos dias mais intensos, me recuperar por meio de sonos mais longos logo na sequência.
O gráfico abaixo mostra as recuperações em mais detalhes:

Há ainda dois gráficos curiosos relacionados ao sono. Fiz um recorte em ambos para ilustrar os 30 dias antes da prova, período que mesclou intensidade máxima ao período de polimento (principalmente na última semana).

O gráfico acima ilustra o percentual de sono em relação à recomendação dada pelo próprio Whoop de acordo com os meus dados cardíacos (em uma escala de 0 a 100%). Ou seja: se o Whoop tiver me indicado, em um dia, que eu deveria dormir por 6 horas para me recuperar totalmente, e se eu dormisse essas exatas 6 horas, meu percentual no gráfico apareceria como 100%.
Além disso, ele segmenta o gráfico por quatro faixas de energia: baixa (low), minimamente viável (get by), alta (perform) e pico (peak). Perceba que, na primeira metade do gráfico, o treinamento estava no volume máximo (chegando a 30+ horas semanais) – mas, ainda assim, sonos maiores garantiram um nível de energia até razoável; já na segunda metade do gráfico, na fase de polimento, o descanso foi claramente atingido.

Este outro gráfico, acima, segmenta o sono pelos seus estágios. O sono leve (azul mais claro) é quase inútil do ponto de vista de recuperação. O REM, azul, é onde a recuperação mental ocorre, essencial para se manter o foco e diminuir níveis de estresse; o sono profundo (deep), por sua vez, é onde recuperação física, muscular, acontece.
Na média, no último mês, foram quase 8 horas de sono diário com 1h50 de sono profundo e 1h05 de sono REM. Suficiente para garantir a recuperação.
E durante a UB515?
Um zoom na semana do evento mostra o óbvio: esforço (strain) altíssimo, beirando os 21 (pontuação máxima) nos três dias. Há, no entanto, uma curiosidade relevante:

O dia mais cansativo foi o primeiro, 15/10 – mesmo tendo sido o mais curto (cerca de 9 horas somando natação com bike). A pontuação chegou em 20,7. Os dias 16 e 17, ambos tendo levado cerca de 11 horas cada, pontuaram 20,4. A natação, portanto, foi o que fez a diferença do ponto de vista de consumo energético.

No mesmo período, a recuperação foi naturalmente caindo. Ela já não começou tão bem assim: a ansiedade da prova, traduzida em uma incapacidade de dormir o que deveria, já me fez abrir o primeiro dia com 45% do “estoque de energia”. Para o segundo dia, sábado, esse estoque caiu para 28%; e para o domingo, dia dos 84km de corrida, ele despencou para 4%. Essa é, talvez, a maior dificuldade da UB515: o desafio aumenta a cada dia na mesma proporção em que a energia para as largadas diminui.
E o sono? Não ajuda a recuperar?
Em tese, sim. Mas o problema é que o desgaste é tamanho que as dores ao final dos dias dificultam um sono de qualidade. Resultado: descansa-se, mas sempre menos do que o necessário. O gráfico abaixo atesta isso:

Perceba que as horas de sono até aumentaram entre os dias 15 e 17 – mas a qualidade, diminuiu. O sono profundo, onde a recuperação muscular acontece, foi de 1h49 no dia 15 para 1h35 no dia 16 e 1h16 no dia 17. Ou seja: ele caiu na mesma medida em que a necessidade de regeneração muscular aumentou. O sono REM, responsável pela regeneração mental, até aumentou no último dia (58m no dia 15, 37m no dia 16 e 1h06 no dia 17). Não sei muito como explicar os motivos, mas o fato é que foi justamente a força mental que me fez conseguir fechar os 84km justamente no dia em que eu estava com menos energia. Sabedoria do corpo, talvez.
O que isso tudo significa?
Como eu comentei no início do post, significa que treinamentos intensos assim dependem muito mais de uma atenção à recuperação do que ao esforço em si. Mesmo não tendo pegado podium (o que, na prática, nunca foi o meu objetivo mesmo), o fato de ter concluído a UB515 com tempo de sobra em relação aos cortes, relativamente inteiro e, principalmente, sem ter sacrificado a sanidade mental ao longo de meses e meses de treino, já foi uma prova incontestável dessa teoria.
Ainda haverá toda uma série de provas intensas que pretendo fazer no futuro, mas o método continuará o mesmo: dominar, cada vez mais, essa arte do descanso.